a vida no mato-office e um poema urbano sobre o calor
se eu sempre volto pra cá, conta como viagem?
oie, olha eu aqui :)
estou no Sítio, na serra perto do Rio. desde que comecei a namorar o Rodrigo, voltamos pra cá sempre que podemos. é um refúgio da família dele, comprado lá em 1977, uma casa simples de um andar, quatro quartos apinhados de camas, sala ampla, três banheiros, um chuveiro interno e um chuveirão no gramado. alguns luxos humanos: uma piscina pequena, uma churrasqueira de tijolos vermelhos, wifi melhor que o da minha casa.
Luxo: o Silêncio crepitante da Floresta Viva
sabiás, pica-paus, tucanos, tiês brancos, vermelhos, amarelos, bem-te-vis, jacus, gaviões, até pombos gordos de vez em quando, grilos, cigarras, sapos, pererecas, teiús, vaga-lumes, besouros, ih esses são só os que consigo nomear.
se eu sempre volto aqui, conta como viagem? se demora só 1h30 pra chegar? se plantei algumas das árvores? se cuidei do alecrim? se colhi pitangas, limões, jambo?
viagem-passeio-volta pra terra
onde os líquens crescem de todas as cores, o sol da manhã acaricia a grama e o da tarde dorme mais cedo, atrás da serra. nos dias mais doces e delirantes, sonhamos em comprar terras aqui perto, um Uno e uma moto. fixar raízes. será?
antes dava pra chegar de trem, estação Morro Azul e uma caminhada na terra. isso bem antes, antigamente, quando as ferrovias eram públicas e havia trens de passageiros, um antes que não conheci. hoje é uma mini-via crúcis que começa no caos da rodoviária Novo Rio eternamente em obras e termina num taxi carregado de compras de mercado, com um motorista que provavelmente nunca usou um cinto de segurança. trazemos tudo que precisamos pra passar uma semana e nos deixamos estar. ser.
mato-office
hoje, entre uma videochamada e outra, Rodrigo me chamou pra ver um segredo no vaso de flores-de-maio. primeiro não entendi porque ele apontava pras plantas tão animado, até que vi o sapo quietinho, como se fosse uma pedra, disfarçado de terra com sua cor amarela-marrom salpicada de pintas escuras. a trepadeira de flores-de-cera está florida em outubro e solta um aroma doce e fresco pela manhã. uma sabiá sempre arma o ninho dela no vaso de plantas ao lado do nosso quarto.
outro dia numa reunião com holandeses, japoneses e mexicanos, invejaram meu “backdrop” natural. falei da riqueza da Mata Atlântica, mas na verdade atrás de onde monto meu escritório tem uma grande touceira de antúrios plantada pela Tia Virgínia. são várias, há uma cerca-viva de antúrios, um desbunde. gosto de como o pistilo cresce com o passar do tempo. caroçudo, feio e necessário.
a Mata Atlântica mesmo mora perto, numa pequena reserva de mata ciliar onde nasce um córrego
que delícia ver o tempo passar na terra. a cada visita, o flamboyant está diferente: sem folhas, folhudo, florido. agora é a época das pitangas e é impossível colhê-las todas. mesmo assim, fiz meu esforço cívico e teremos suco de pitanga congelada até dezembro, pelo menos.
daqui
longe do zumbido de ar condicionado tão inerente à existência em Copacabana
fiquei com vontade de compartilhar um poema que começa exatamente com ele
zzzzz
odeio esses seres elétricos que pingam uma chuva nojenta sobre os pedestres das grandes cidades tropicais, secam o ar, esquentam o exterior enquanto resfriam o interior mas ainda são o melhor paliativo contra as temperaturas que só vão aumentar a cada verão, junto com a conta de luz.
estou vestindo meia, chinelo, calça, casaco, cachecol numa friaca pré-verão, mas é no calor que eu penso. no problema do calor. e em como vou resolvê-lo. como vamos resolvê-lo, coletivamente?
o poema nasceu no maravilhoso curso de extensão Escritas Que Dançam Corpos Que Escrevem, que tive a sorte de fazer este semestre na UNIRIO. é oferecido por Adrianne Ogêda, Priscila Menezes e André Bocchetti e, se eu fosse você e morasse no Rio, ficaria de olho pra participar da próxima edição. é grátis e coube tão bem no meu momento artístico que é como se tivessem inventado ele pra mim.
depois de uma prática de dança enérgica numa sala lotada e aquecida pela última onda de calor, minha palavra-chave era Silêncio:
o silêncio do verão zumbe ares condicionados de quem pode pode o silêncio do verão rumoreja ventiladores de quem pode o silêncio do verão crepita leques de quem tem forças o silêncio do verão bafeja quente um hálito putrefato umedece tudo que transpira pele óculos janelas terra vapores que depois choram chuva breve alívio antes do mormaço o silêncio do verão agita bactérias fungos insetos plantas animais também claro inquietos na cama ninho toca procuram um ponto fresco no chão uma lufada de brisa ou algo artificial que alivie ar condicionado ventilador leque sopro na nuca o cheiro do verão é de suor metálico e sangue frito por raquetes elétricas chinesas mosquitos grandes e pequenos sugam sangue espalham doenças nuvens resultantes do desequilíbrio gente-inseto-plantas ai que falta que o urucum faz pra repelir esses malditos empunho minha raquete trunfo contra o principal predador natural da humanidade além da própria humanidade o silêncio do verão é ruidoso e só dorme vencido pelo cansaço
tô pensando em mandar textos assim quando não tiver um capítulo novo do livro pra compartilhar. me diz o que acha?
beijinhos e até a próxima,
Lívia
Que edição maravilhosa! Adorei esse texto 😊
Ontem eu estava olhando uma flor de agapanto se abrindo aqui aos poucos e pensei em escrever, mas como descrever algo tão singelo e bonito? Obrigada por esse texto é por esse poema, dizem tudo.