a estadia em Pushkar alternou-se entre festas e explorações, pachorra e descanso. a cidade tem um lago no meio do centro, ele é sagrado porque é onde Brahma molhou o pé (ou algo assim). por isso o território inteiro é sagrado. mais vivo à noite do que ao meio dia, quando o calor do Rajastão na primavera nos obriga a ficar recolhidos na sombra.
diferente das outras cidades até agora, Pushkar é mais regional, mais provinciana, menos turística, tem até menos moto, eu acho. dá a sensação de ser mais autêntica. mas eu sei que as grandes cidades são tão Índia quanto os povoadinhos no meio do nada. são muitas as Índias.
o lago já foi mais bonito, os rios que o alimentam foram barrados mais pra cima e agora só dão o ar da graça na época das monções. antes a cidade era verde com várias cachoeiras por perto, disse o Sukha. Sukha, um maluco beleza empreendedor global de 42 anos e muita história pra contar. disse que nasceu numa vila próxima a Pushkar, aos 8 anos foi pra Mumbai, depois viajou pro Chile com uma família, voltou chorando, trabalhou com coisas ilícitas, aos 16 anos foi pra Israel, fez grana, morou na Espanha e hoje está na ponte aérea Tel Aviv - Pushkar, onde tem uma pousada tilelê cheia de hóspedes israelenses. Sukha’s Place. ela é meio longe do centro, mas tem um ambiente bonito e acolhedor, desses que te convidam a ficar pra sempre, ou pelo menos durante a hora mais quente do dia. ótima comida, ótimo papo, uma área comum aberta, fresca e repleta de tapetes e almofadas.
eu e Ferdi nos hospedamos no Shree Palace, bom também porque é barato, central, tem piscina e terraço. barganhei até chegarmos em 250 rúpias por noite. uma das hóspedes é a alemã Hannah, 19 anos e já há 4 meses na Índia viajando sozinha. perguntei se não era difícil ser mulher branca e loira viajando sozinha, ela disse que não (duvido).
assim que eu e Ferdi chegamos e nos instalamos no hotel, tentamos sair pra almoçar. o sol nos fez desistir, nem os babuínos estavam nas ruas e olha que eles dominam certos quarteirões. não tinha como comprar comida, os restaurantes que encontramos estavam fechados pro calor. tivemos que dormir a sesta com fome, depois achamos um ambulante vendendo samosas salvadoras.
na terceira noite, tomamos um bhang lassi no terraço do Shree Palace. bhang lassi é uma batida de pasta de maconha fresca. não pode vender bebida alcoólica nem carne, mas bhang pode. é parte da cultura ancestral daqui, nem tem como tentar proibir. tomei e uma luz roxa riscou o céu pulsando como aurora boreal, meu corpo relaxou vendo as estrelas brincarem no horizonte, eu ria de qualquer coisa até a barriga doer. no outro dia, Ferdi e Hannah tomaram de novo, mas eu não quis. forte demais.
o lago é a maior atração da cidade, o motivo da existência dela. é um lugar gostoso pra ficar quando o calor castiga demais. uns brâmanes (ou dois golpistas fantasiados de xamãs brâmanes) nos enganaram com o papo de pedir bênção ao rio. primeiro me benzeram sem pedir, jogaram uma água na minha cabeça, pintaram um bindi vermelho na minha testa, depois cobraram 300 rúpias pelo “serviço”. dei 100 rúpias e disse que voltava depois com o resto - hahaha. ainda assim, paguei 100 rúpias por um serviço que não tinha contratado, que raiva. o Sukha se despediu de nós muito mais espiritualmente do que essa “cerimônia” no lago. olhou no fundo dos meus olhos com os seus olhos amendoados e amistosos, quase um minuto sem piscar, e murmurou palavras mágicas em uma das mil línguas do território indiano, talvez sânscrito?
Pushkar também é conhecida por abrigar a feira anual de camelos, quando todos os criadores do Deserto de Thar se reunem pra comprar, vender e exibir seus dromedários. acho que todos são dromedários mesmo, uma corcova. a Feira de Pushkar acontece em outubro, mas vimos alguns desses grandões bebendo água pela cidade. pareciam mansos e tranquilos. tentei comprar um sapato de couro de camelo no mercado, mas não achei do meu número… pena, porque o par custa só 200 rúpias (menos de 15 reais!).
vimos, ouvimos e até participamos das festas de casamento, de dia e de noite e de madrugada. maio é o mês das noivas aqui também. e cada celebração dura vários dias, com festa na casa do noivo, na casa da noiva e na rua. toda noite de maio, as festas-cortejos percorrem as ruas tocando música alta, o noivo montado num cavalo branco, todos dançando bem vestidos, coloridos e brilhantes. parece um bloco de carnaval, só que só tem homem e ninguém se beija. eu sou a única mulher na rua a essa hora e só posso participar porque sou estrangeira.
eu e Ferdi viramos atração de todas as festas que encontramos. dá um pouco de vergonha, mas é interessante e divertido. a gente sorri, dança e vai embora antes que comece a ficar estranho. numa dessas, fomos parar na frente da casa de um patriarca com um turbante colorido enorme. uma festona ocupava a rua toda, com fogueira e petiscos em grandes bandejas. o dono da casa pediu que a gente fosse até ele. olhou bem nos olhos do Ferdi e tirou o turbante. ele virou um homem muito menor, magro, pequeno, velho. então posicionou uma das pontas do tecido na cabeça e foi refazendo o turbante, olhando pra nós com os olhos expressivos, redondos e cor de caramelo (e por “nós” quero dizer o Ferdi. ele me ignorou completamente. mas melhor ser ignorada do que expulsa da festa dos machos, a das fêmeas é dentro das casas). sem desviar o olhar, ensinando a fazer igual (e eu atenta tentando melhorar minha técnica turbântica), o patriarca enrolou metros e metros de tecido colorido tye-dye rosa, laranja, amarelo, verde, azul, roxo, rosa, voltas e voltas naquela cabeça que ia ficando maior e mais imponente, o pescoço mais alongado e a coluna mais ereta.
não passa nenhuma linha de trem aqui, temos que chegar e sair de ônibus. micro-ônibus, na verdade. e deu medo porque o Ferdi pediu pra ficar na janela pra poder cochilar e, uns pontos depois do nosso, o veículo ficou cheio. aí, depois de um tempo, percebi que os homens ficavam trocando de lugar, se revezando pra ficar ao meu lado. agora eu estou usando a mesma blusa branca de manga comprida de tecido fino porque faz calor demais, uma blusa que cobre meu corpo mas não foi barreira pros jovens tarados que queriam passar pelo menos 5 minutos de viagem olhando uma branca de perto. olhando ou fazendo sei lá mais o quê. o Ferdi acordou, viu a situação e trocamos de lugar, a movimentação diminuiu. lembrei que a Hannah disse que não é difícil viajar sozinha na Índia… quê! ainda mais ela que é alta, cabelos claríssimos e olhos azuis. praticamente uma mulher-holofote! ou ela é muito distraída ou não se intimida por esse tipo de comportamento.
eu sim, porque sei que pode ser perigoso.
o bom de viajar de ônibus é que as paradas demoram mais tempo nas rodoviárias do que nas estações de trem. tempo pro cigarrinho de alguns passageiros, pra fazer um xixi, pra tomar um chai vendo as pessoas que esperam pelos outros ônibus. mulheres em bando, velhas e jovens com a pele castigada pelo sol e sucessivas gravidezes, e suas várias crianças. homens solitários de turbantes enormes, olhos claros, pele morena, bigodes bem desenhados, calças-saias tradicionais feitas de um tecido inteligentemente dobrado e amarrado na cintura. sentam-se de cócoras esperando alguma coisa acontecer.
uma Índia como eu esperava que a Índia seria. as ruas cheiram a cardamomo.
beijinhos,
Lívia
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