no dia 21 de julho, meu telefone tocou. coisa que nunca acontece porque quase ninguém tem meu número. era Marie Louise Randecker.
“Lívia, queria te falar… e tudo bem se você quiser adiar ou cancelar sua vinda…”
“o que foi? aconteceu alguma coisa?”
“não, não, tá tudo bem! mas é que eu vou ter que trabalhar fora da fazenda até o dia 31. só meu marido, Kurt, vai estar por aqui.”
“uai, mas se ele vai estar… por mim não tem problema.”
“mesmo? então ótimo, ótimo. você chega dia 26?”
“sim, pode contar comigo.”
“ok, Kurt vai te esperar no porto”
no dia 26, saí de Trondheim pela manhã e segui até Mo i Rana com o rosto grudado na janela do trem.
vales profundos
montanhas altíssimas
lagos translúcidos
florestas de pinheiros antigos
cachoeiras congeladas
a cada túnel que corta a rocha, a paisagem se transforma completamente
as conexões trem-ônibus-ferry correram como esperado.
uma chuva fina começou a cair quando entrei na embarcação.
Hestmona é a última parada e eu a única passageira restante.
em frente à casinha azul de madeira do píer, um senhor esperava com uma bicicleta ao lado do corpo, ignorando a garoa. cabelos compridos amarrados para trás, barba grisalha aparada na altura das clavículas, sem bigode. sorriso largo com poucos dentes na frente, macacão de brim azul escuro, galochas cinza, tronco encurvado e, para completar o visual de Mestre, dos Sete Anões, um gorro de lã azul marinho.
me recebeu com um aceno alegre de longe, enquanto o barco atracava.
eu devolvi o sorriso meio tímida, mineiramente, fomos caminhando pra fazenda.
Kurt empurrava a bicicleta e me apresentava para os elementos da paisagem:
a montanha robusta que dá nome à ilha
“quando as nuvens saírem, você vai poder perceber que parece um homem montado à cavalo, que em norueguês é hestmannen”
as fazendas no caminho
“todos usam agrotóxicos e praticam pecuária intensiva, menos a gente. é uma tristeza”
onde geralmente crescem cogumelos comestíveis
“quando não estiver chovendo, você pode vir por esse lado para colher alguns, ficam deliciosos em omeletes”
o círculo polar ártico
“ele passa ali no norte da ilha, você pode pegar essa bicicleta e dar uma volta para conhecer tudo”
comentou sobre os dias longos do norte
“verão é assim, há pouco tivemos o solstício, o sol ficou no céu o tempo todo. já no inverno, a gente vê a aurora boreal sempre que as nuvens somem”
e sobre o clima
“no verão chove mesmo, mas de vez em quando tem sol, se você tiver sorte. a ilha é sempre meio chuvosa, graças à corrente do Golfo. mas nem dá pra reclamar. é essa corrente que impede os invernos sejam muito frios. a temperatura oscila entre -10ºC e 10ºC. já o verão… desculpe, querida, mas não vai passar muito dos 20ºC!”
respondi
“eu sou tropical, mas aguento.”
e ele riu, gargalhada desdentada, cabeça para trás, mão na barriga chacoalhante.
em poucas horas, minha desconfiança mineira derreteu e já estávamos falando alto, gesticulando, trocando histórias.
o sr. Randecker é fascinado pelos indígenas da América. compartilhei o pouco que sabia, que não era tanto. falei da diversidade dos povos, dos êxodos, das línguas, como constroem as casas, os cestos, as roças… e como aqui não tem internet, tive que descrever as imagens das minhas memórias, do melhor jeito que pude.
a fazenda Hestmonvågen fica na beira do mar. são 8 hectares e quatro construções: a casa incrustada na pedra (uma das paredes é a própria rocha), o galinheiro desabitado, o curral do outro lado da horta e a cabana na beira da praia de pedras, onde o barco fica guardado.
assim que me aproximei da cerca, Branco apareceu farejando. um cachorro de pastoreio mistura de border collie e pai desconhecido, esperto, simpático e dengoso, já chegou abanando a cauda.
Bobolink, o gato laranja gordíssimo que recebeu o nome de um pássaro, conheci assim que entrei na casa. sentado sobre a mesa da sala de estar/cozinha/copa. felino preguiçoso, sequer se moveu quando entrei, mas ficou me acompanhando com o olhar até que deixei a mochila no chão e fiz carinho em sua nuca. fechou os olhos satisfeito, aceitando minha presença.
uma escada em espiral leva para os quartos de hóspedes, o meu tem as paredes pintadas de rosa, cama ampla, cobertores quentes, um baú e janela voltada para a fazenda.
no segundo andar também está o cômodo da banheira (água aquecida a gás, ainda bem) e a pequena biblioteca/segundo quarto de hóspedes. no térreo, dividindo espaço com a sala, está o quarto de Kurt e Marie Louise (vi apenas de relance, cama de casal, muitos cobertores, a parede dos fundos repleta de livros).
ao lado da escada, no canto esquerdo da casa, uma caldeira elétrica aquece todos os cômodos. quer dizer, quase todos. tudo que é perecível, tipo queijo, manteiga e leite fresco, é guardado num quartinho separado, o que fica encostado na rocha e não recebe calor do aquecedor: o “cool room”. o lavabo também está nessa área da casa meio do lado de fora, ao lado da geladeira natural. deve ser uma provação fazer xixi e cocô durante o inverno. pra mim já foi difícil no verão a 15ºC!
conservas de frutas e legumes, batatas e maçãs invernadas são armazenadas no porão, embaixo da casa. é também onde acumulam o que não podem transformar em compostagem ou reutilizar. descartam apenas um saco grande de lixo por ano.
um saco de lixo por ano!
são duas as vacas leiteiras: uma cor caramelo e outra preta e branca, mãe e filha. dois novilhos, um macho e uma fêmea, saltitavam pelo pasto quando cheguei. num cantinho lá do fundo do curral, algumas galinhas poedeiras vivem seus últimos anos.
pra começar, primeiro é necessário aprender o ritual de amizade com equinos.
essencial pra trabalhar com Brownie, o cavalo forte que ajuda na aragem do campo.
é uma técnica que Kurt aprendeu numa revista rural espanhola:
primeiro, é preciso fazer cafuné na nuca do cavalo, ali na base da crina.
se ele fungar de aprovação, então é preciso abraçar a cabeça e acariciar o focinho, aquela parte de pele clara e pelagem macia.
depois, soprar vigorosamente as narinas dele algumas vezes, talvez três.
os cavalos fazem isso entre si, pode reparar.
há cinco anos, Marie Louise passou a trabalhar uma semana por mês como cuidadora em um asilo numa ilha próxima. interessante, pois ela é quase idosa, sessentona forte e parruda.
foi por isso que ela tinha me ligado, ficou com receio que eu achasse um problema ficar a sós na fazenda com Kurt, sem nem conhecê-lo. ainda bem que não me preocupei isso, viramos ótimos amigos.
foi necessário que Marie Louise arranjasse um outro emprego quando o governo norueguês cortou os subsídios que dava aos fazendeiros que produzem menos de 10 mil euros por ano. uma estratégia óbvia pra acabar com os pequenos resistentes do campo, e estão conseguindo. o casal teve que achar outra forma de ganhar dinheiro para as sementes, contas de luz, assinatura de revistas e outras despesas, já que as batatas orgânicas e os outros legumes que vendem não acumulam verba suficiente pra manter a fazenda. e eles não têm licença para vender leite, só podem produzir pra consumo próprio.
mesmo agora, dois anos depois que o subsídio voltou a chegar, Marie Louise continua fazendo bicos nesse asilo, cobrindo férias e plantões. tomou gosto. e era bom conversar com outras pessoas, acumular um dinheirinho pro caso de alguma nova calamidade, comprar tecidos e alguns mimos, como a chaleira elétrica. com o tempo dela na fazenda reduzido, mesmo com a eventual ajuda de voluntárias como eu, algumas atividades precisaram ser interrompidas: não criam mais galinhas poedeiras nem abelhas.
Kurt não quer mais nada além de ser deixado em paz. velho ranzinza com o sonho de morrer trabalhando na fazenda, isolado do mundo capitalista.
essa diferença motiva brigas, presenciei algumas quando Marie Louise voltou a Hestmona.
… continua …
feliz 2024 pra nós! a parte 3 dessa história chega em breve…
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