este capítulo começou aqui (parte 1), seguiu aqui (parte 2) e continua abaixo…
KURT RANDECKER
uma biografia não autorizada, escrita a partir das nossas conversas
nasci em 1952 na cordilheira do Jura, a norte dos Alpes. montanhas muito bonitas que separam os rios Reno e Ródano. a fazenda do meu pai fica na parte alemã que poucos anos depois ficou na mão dos ingleses. foi muito difícil durante a guerra, mas não falávamos disso em casa.
nasci aprendendo alemão e inglês, e quando cheguei aqui aprendi as duas línguas norueguesas oficiais, bokmål e nynorsk. já a Marie Louise nasceu no Tirol, zona alemã que também fala italiano e foi ocupada pelos franceses, por isso ela fala essas três línguas, além do inglês e do norueguês bokmål, que é o mais falado aqui.
eu sempre adorei ler e aprender, tirei boas notas na escola mesmo sendo da roça. acabei indo estudar o ensino médio superior, o gymnasium, em Stuttgart. fiquei lá por um tempo. é uma cidade grande, na época já tinha fábrica da Mercedes Benz e da Porsche, então tinha muita oportunidade de trabalho. eu sentia falta da fazenda, mas acabei ficando e arrumei trabalho numa fábrica de bíblias.
bíblias! justo eu que não acredito em deus! hahahaha
certa noite, saindo do trabalho, vi um grupo de homens entrando numa portinha iluminada, furtivamente. fui até a casa e pedi pra entrar. era uma reunião comunista! me identifiquei logo com as ideias deles, especialmente com o maoísmo. no meu tempo livre na fábrica, sem ninguém saber, apliquei uma capa vermelha de couro e bordas douradas nas páginas do Livro Vermelho do Mao, olha como ficou bonito. é a minha bíblia.
eu nunca deixei de querer ser camponês.
quando conheci Marie Louise trabalhando numa loja em Stuttgart, antes mesmo de começarmos a namorar contei que queria um dia voltar a trabalhar na terra. ela gostou da ideia, disse que iria comigo quando estivéssemos prontos. eu estava muito envolvido no Partido Comunista na época e eles arrumaram um emprego na Mercedes Benz pra mim, para que eu pudesse agitar greves na fábrica.
eu nem trabalhava muito na linha de produção, ficava indo de uma área para a outra ouvindo as reclamações dos camaradas, reunindo com eles, estimulando que se organizassem para reivindicar direitos. dava muito certo, conseguimos melhorias e ainda era divertido. mas com o tempo fui vendo todos os podres do partido, a corrupção das pessoas, ao mesmo tempo que sentia falta da minha terra, das montanhas, de acordar cedo e dormir cedo.
eu fui parte do Maio de 68, um dos participantes do movimento back-to-the-land, com o desejo de viver com autonomia e auto-suficiência, como meus avós viveram. herdei a fazenda do meu pai e chegou a hora de voltar para lá. como Marie Louise sabia fazer queijo pecorino, criávamos ovelhas e também aproveitávamos a lã para tecer tapetes e roupas. foi uma época maravilhosa, sinto muitas saudades.
não existia internet, mas a gente já aceitava trabalhadores voluntários que vinham nos ajudar no verão em troca de casa e comida. publicamos anúncios nas revistas rurais que assinávamos e apareceu gente interessada em aprender a fazer queijo e a cuidar da terra do jeito tradicional, sem químicos.
quando a gente planta de forma orgânica, é mais desafiador. você tem de prestar atenção no que a terra está falando. um trabalho muito mais inteligente do que só comprar fertilizante e máquinas que fazem tudo por você.
vivemos assim por vinte anos. então, o governo alemão começou a matar os pequenos fazendeiros. matar é modo de dizer, né. foram retirando os subsídios que nos ajudavam a manter a fazenda pra nos fazer desistir.
pro capitalismo, é muito melhor que existam poucas fazendas, poucos produtores, mais químicos, produtividade, produtividade. é interessante que as pessoas estejam na cidade, longe da terra, longe do que nos alimenta, alienados.
a gente não queria sair, mas não teve jeito.
passamos por uns anos muito duros, até que decidimos mudar de país. ir pra algum lugar longe do capitalismo, longe da encheção de saco. numa revista, vimos o anúncio de uma fazenda pequena, como queríamos, à venda perto de Bergen. Marie Louise se correspondeu com a mulher que estava vendendo a propriedade e viajou até lá para conhecer. quando chegou, a fazenda já tinha sido vendida, mas a amiga dela disse que havia outra, essa aqui em Hestmona.
os donos queriam vender essa fazenda para um casal com filhos, porque a escola da ilha estava a ponto de fechar, mas não encontraram outro comprador e conseguimos fechar negócio. a ilha não tem mais escola, nem posto de saúde nem agência de correios.
eu odeio viajar, prefiro receber os viajantes. quando Marie Louise comprou a fazenda, vim direto pra cá. as máquinas que temos, compramos do filho de uns fazendeiros suecos. os pais dele tinham morrido e ele não tinha interesse de ficar na terra. são tecnologia de 1950, a maioria delas mecânica. só uma que usamos no campo de batatas tem motor, à diesel.
aqui tivemos que reaprender tudo o que sabíamos sobre terra e clima. é muito diferente da Alemanha, chove quase que constantemente. é a corrente do Golfo... para secar o feno, usamos uma técnica sueca que aprendi num livro, vou te mostrar amanhã porque já está na época de cortar aquele pedaço de pasto ali. esticamos um arame atravessando o campo, tipo um varal, e vamos empilhando o feno nele. assim, mesmo com essa chuva chata de agora, o feno de baixo seca. aí podermos armazenar comida pras vacas no inverno. as nossas vaquinhas pastam durante nove meses do ano, uma vida bem melhor do que as vizinhas, coitadas, que só veem o sol durante três meses.
chegamos em 1999 e em 2005 nos inscrevemos no WWOOF. a maioria dos voluntários que chegam são mulheres intelectualizadas da cidade como você, com uma visão romântica do campo, querendo aprender como vivemos, procurando paz. e trabalham duro! nunca tivemos problemas com os voluntários. só uma vez uma mulher quebrou a torneira da banheira - não sei como ela fez isso! hahaha!
pena que você só fica por 15 dias, mal vai dar tempo para aprender a ordenhar as vacas, para sairmos mais longe com o barco, para fazer geléia das frutinhas que vão amadurecer ao longo do verão… mas tudo bem, vai ser o suficiente para a gente se divertir um pouco, fazer manteiga, queijo, conhecer a ilha.
semana que vem chegam duas voluntárias alemãs, depois chega a Marie Louise, acho que vocês vão se dar bem…
… continua…
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