o Mar Morto está mesmo morto. ao seu redor, uma terra rochosa inóspita, árvores retorcidas e arbustos aqui e ali. não sei porque achei que seria diferente. sei lá o que eu esperava de um mar evaporado, tão salgado que nada afunda.
eu e Vincent resolvemos alugar um carro pra vir boiar aqui. teoricamente até dá pra pegar um ônibus de Amã até um povoado, depois uma carona até o mar, então outra carona até o próximo povoado. mas Vincent só tem mais um dia na Jordânia e a minha carteira de motorista do Brasil basta pra alugar um carro. a outra possibilidade era pagar por um tour com day use num dos vários spas chiquérrimos à beira do Morto, mas eu não tenho o dinheiro e o Vincent não tem o tempo nem interesse pra pagar por isso: o que ele queria mesmo era ver o castelo de Al Karak, que os cruzados construíram em mil e poucos, um pouco a sul do Morto.
sem gps, nos perdemos por Amã procurando um mercado que vendesse suco de tamarindo, espumante porque o vendedor o atira do extravagante jarro de metal para o copo com uma acrobacia que faz o líquido voar em um arco acima das nossas cabeças. também compramos água e sanduíches pro caminho. me sinto mais confortável como co-pilota, então passei o volante pro Vincent. depois que encontramos a avenida certa, até que foi fácil sair da cidade. a sinalização é boa e bilíngue árabe-inglês.
marquei no mapa o ponto de praia gratuito no Morto, perto de uma cachoeira que poderia nos ajudar a tirar o sal do corpo. desde criança tenho alergia aos sais marinhos e não sabia como ia me sentir nO Mar mais salgado do mundo. uma garrafa d’água de 2l talvez fosse suficiente pra amenizar alguma reação forte, mas foi a existência da cachoeira que me tranquilizou a seguir com esse plano.
meu companheiro de viagens dos últimos três dias é sulafricano, tem 51 anos, vive em Mascate, no Omã, é cineasta e aproveitou um feriado prolongado pra viajar procurando locações históricas pra rodar um filme de época. nos dias anteriores, fomos a Madaba, Jerash e Ajloun, usando transporte coletivo e carona. nos conhecemos no ônibus do aeroporto pro centro de Amã e estou feliz que encontrei alguém agradável, que tem um plano (eu não tenho) e está disposto a encaixar os meus desejos nesse plano. nossa conversa flui facilmente entre história, filosofia, política, economia, religião… e os silêncios também são confortáveis.
chegando perto do Morto, a paisagem que já era meio pedregosa ia ficando mais seca, o ar mais denso - e quente, porque o meio dia vinha chegando. depois de poucas horas, as águas azuis cinzentas apontaram no horizonte. nos aproximamos da praia e paramos o carro perto da saída pra trilha da cachoeira morro acima. eu sabia que teria que entrar de roupa e tudo, então vesti uma blusa fininha, uma calça leve já meio suja, sutiã e calcinha também sujos. descemos por uma trilha entre pedregulhos e chegamos à orla de pedras até um tanto grandinhas, dessas que não dá pra caminhar sem olhar pro chão sob o risco de torcer o pé ou pisar num lixo cortante. alguns grupos de jordanos a passeio estavam ali, nada mais.
as águas do Mar Morto são meio nojentas. têm um aspecto oleoso, viscoso, mas são límpidas. nada vive por muito tempo aqui. e a sujeira da praia pública piora essa impressão: plástico, pedaços de tecido, metal, coisas que os visitantes deixam pra trás e que vai sendo corroído pela maresia. estamos a mais de 400 metros abaixo do nível do Mediterrâneo e o ar também parece mais denso, acumulado entre nós.
eu devia ter entrado de chinelo, mas fiquei com medo de perdê-lo. entrei com muito cuidado pra não me machucar com algum lixo. a água estava fresca, surpreendente para aquele calor do meio dia, mas não era refrescante. ela resistia aos meus passos, como se fosse um pudim, fragilmente densas. tive que avançar bastante até o nível da água chegar acima dos joelhos.
hora de boiar. com o celular na mão esquerda filmando, respirei fundo e me deixei cair sobre as águas mortas. é uma sensação doida, quase mesmo como deitar sobre um grande pudim com calda de caramelo. querer descer o tronco, a bunda, e não conseguir. me deixei estar.
vejo meus pés bronzeados com a marca dos chinelos, a orla pedregosa da Jordânia de um lado e a de Israel do outro. o céu aquele azul com zero umidade, levemente acinzentado por causa do ar salgado entre nós. poucos minutos bastaram. tirei mais algumas fotos e me levantei com certa dificuldade. as águas queriam que eu ficasse lá boiando até secar como um bacalhau. e o fato de ter o celular numa mão não ajudava. nem pensar deixar ele molhar! voltei para a praia e foi a vez do Vincent, fiquei tomando conta das nossas coisas. enquanto ele entrava animado feito criança, rapidamente enxaguei a cabeça, o peito e os braços com parte da água mineral que trouxe comigo. a alergia não se manifestou, mas eu que não queria brincar com ela.
alguns homens, com suas mulheres e crianças por perto, ficaram olhando minhas roupas grudadas no corpo, mas ninguém se aproximou nem disse nada constrangedor. quando Vincent voltou, eu entrei mais uma vez, sem o celular pra poder estar despreocupada. mas não é agradável estar ali. chega, vamos para a cachoeira.
coitada de mim imaginando uma cachoeira como as de Minas Gerais! a que encontramos era só um corguinho escorrendo pelas pedras ao lado da estrada. muito mais suja do que a orla da praia. roupas, vidro, bituca de cigarro. o fundo do mini pocinho onde poderíamos entrar e boiar para tirar o sal do Morto estava cravejado de caquinhos transparentes e marrons, das garrafas que o povo mal educado deixou pra trás. sentamos numas pedras à margem e recolhemos água com a garrafa, pra nos banharmos mais ou menos, como dava.
um grupo de jovens conversava alto numa parte um pouco acima. mantivemos distância, deviam estar sujando aquele que devia ser um santuário, umas das poucas fontes de água doce no meio daquela salobridade toda.
de volta à estrada, nos revezamos pra trocar de roupa entre as portas abertas do carro. bebemos o resto da água mineral e seguimos viagem. foi só quando começamos a nos afastar dali que percebemos que a estrada era só subida, e que antes ela tinha sido só descida. nos afastamos do umbigo sujo do mundo, cheio de craca e vidro, doidos pra encontrar uma parada de estrada que vendesse água, e quem sabe um falafel. demorou, viu? talvez meia, uma hora, até chegar num povoado que pudesse nos reabastecer. então, pé na estrada, que o castelo de Al Karak fecha no final da tarde.
lá está ele rochoso, geométrico e amarelo como o entorno, encarapitado num morro mais alto, o sol entardecendo atrás de nós. quando chegamos, os portões tinham acabado de se fechar e o Vincent ficou arrasado, coitado. vendo a gente triste em frente às placas no muro exterior, o dono de um restaurante ao lado chamou o porteiro do lugar, que ainda estava por ali. muito amável, ele reabriu o castelo pra nós. sim!
fizemos um tour rápido, mas só nosso. percorremos grandes salões de pedra até chegar num pátio com vista pro vale lá embaixo. até daria pra avistar o Mar Morto se estivesse mais claro. vimos o fim do entardecer, o sol já atrás da terra brilhando uma luz azulada sobre os morros roliços salpicados de plantações.
pronto, chega. nos despedimos do porteiro com muitas reverências e, claro, jantamos-almoçamos no restaurante que veio ao nosso socorro, que também era um hotel. a tarifa razoável, 15 JDs, um pouco mais do que eu podia pagar, inclui o café da manhã e eu não queria ir pra lugar nenhum àquela hora da noite.
Vincent tinha que voltar para Amã, seu vôo de volta pra Mascate era no dia seguinte cedo. e eu tinha que continuar rumo ao sul, para Petra. me despedi com gratidão. minha estada na Jordânia teria sido completamente diferente e provavelmente menos divertida se eu não tivesse colado nos planos dele. e ele estava grato por mim também. pensando agora, talvez estivesse um pouco apaixonado, encantado, e se eu tivesse algum interesse, poderíamos ter vivido um romance. mas eu não quis e ele me deixou bem à vontade na nossa amizade curiosa pelas ruínas intactas de uma Jordânia sem terremotos nem ataques que poderiam ter destruído as construções milenares que visitamos.
lá foi ele com o carro alugado.
aproveitei a solidão da noite pra atualizar os vários dias de diário atrasado. avisei o pessoal do hotel que precisava pegar a primeira van para Wadi Musa, o povoado-cidade onde ficam as ruínas de Petra, e às 4h30 o dono do restaurante bateu à porta pra me acordar. meu café da manhã de pão, tomate, pepino e ovo cozido pronto e embalado pra viagem.
desci à pé pela estrada serpenteante enquanto o sol nascia junto com a fajr, primeira oração do dia. melodia que aprendi a amar como amo os docinhos folhados com chá no fim de tarde e o desjejum fresco e nutritivo que nos dão em todos os hotéis na Jordânia. além da melodia cantada dos minaretes, só o som dos meus passos sobre o cascalho da estrada, 20kg mais pesados porque levo minha casa comigo. degusto o ar fresco da manhã que ainda está abrindo os olhos enquanto os meus já estão despertos, absorvendo tudo que conseguem.
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