depois de seis meses viajando sob o sol, volto a Istambul numa manhã quentíssima de junho. estou exausta. a pele morta acumulada no meu corpo precisa ir embora.
resolvo fazer como os antigos turcos e me banhar numa hamam. são muitas opções e me decido pela Çemberlitaş (lê-se tchemberlitash) por ser a mais antiga de todas, em atividade desde 1584. um edifício construído pelo grande arquiteto do império otomano Minar Sinan, que projetou mesquitas, universidades, palácios, cozinhas públicas, pontes. em Istambul é assim: a gente tropeça em pedras que estão na rua há tanto tempo quanto o primeiro contorno de Brasil num mapa-mundi.
além da função óbvia de limpeza, é na hamam que há séculos as comunidades se encontram, fofocam, tecem alianças e vinganças enquanto curtem uma sauna. hoje várias delas têm serviços de spa, como máscaras faciais e massagens terapêuticas, e existe uma rede secreta (não tão secreta assim) de hamams frequentadas por homens que se pegam nas cabines privadas (a versão turca da sauna gay).
Çemberlitaş é separada em duas alas exatamente iguais e espelhadas, a masculina e a feminina. antes eram até duas entradas, em ruas diferentes, mas a porta das mulheres dava pra uma viela que no século XX foi alargada para a passagem de carros. por isso, hoje desço alguns lances de escada até uma recepção unissex, onde contrato o banho tradicional. eu achava que, por ser tão famosa e importante, seria caríssimo tomar um banho na Çemberlitaş, mas ela não é das hamams mais caras, nem das mais luxuosas. coube no meu orçamento mochileiro sem drama.
celular é terminantemente proibido e fica guardado na entrada, junto com quase todos os meus pertences exceto minha muda de roupa. por isso, só tenho fotos da entrada.
recebo meu kit de banho e já começo a experiência encantada pelo aroma de limpeza e cuidado que ele inspira. dentro da sacola de tecido, encontro pestemal (toalha xadrez de algodão bem levinho), kese (pequeno saco de tecido de toalha, usado pra esfoliar o corpo), sabonete cheirosíssimo com essência de rosas e calcinha descartável de algodão branco, bem folgadona.
passo por um corredor estreito, gambiarra depois que eliminaram a entrada das mulheres, e chego num grandioso soğukluk, o salão frio. um vão central de teto abobadado ilumina três andares de vestiários. iluminação baixa, aroma floral e fresco, paredes de mármore, acabamentos em madeira, silêncio quebrado pelos leves ruídos das clientes em trânsito. escolho uma cabine no último andar só pra poder andar mais pelo espaço. as salinhas são pequenas, mas bem pensadas. escaninhos pros nossos pertences, um par de camas estreitas pra quem quiser tirar um cochilo, mas a parede que dá pros corredores é de vidro: privadas pero no mucho, pra evitar putaria. tiro minhas roupas empoeiradas e meladas de suor, visto a calcinha da hamam, penduro o kese no pulso, me enrolo no pestemal e vou pro banho.
algumas mulheres de sutiã e calcinha bege conversam baixinho na ante-sala morna entre os salões frio e quente. são as tellaks, as massagistas, esperando pelas clientes. uma mulher de uns 60 anos me recebe com um sorriso acolhedor e me guia para dentro do sıcaklık, o salão quente. epicentro da hamam.
ao atravessar uma pesada porta mármore, sou recebida pela luz difusa dos raios de sol que entram pelas frestas de uma abóbada tão alta e imponente quanto a de um templo antigo. tudo é revestido de mármore: as paredes, as colunas, os arcos de sustentação, a cuba das pias de água gelada, as salas que abrigam chuveiros e piscinas. no centro, sagrada como um altar, a göbek taşı, mesa alta de mármore aquecido pela caldeira que fica logo abaixo dela. algumas mulheres estão sendo massageadas e outras descansam de barriga pra cima e olhos fechados. minha tellak não sabe muitas palavras em inglês, mas vai até a mesa e gentilmente pede que eu me deite também.
a hamam não é um ambiente esfumaçado nem quente demais, mas o ar é denso, como na floresta amazônica. me deito sobre o mármore cálido, acariciada pela luz natural que vem do teto erguido há quase 500 anos. tudo foi artisticamente projetado pra causar exatamente o efeito que eu estou sentindo: confortável como num útero. aos poucos, começo a suar. viro de barriga pra baixo, tiro um cochilo, viro de barriga pra cima de novo… quando a situação começa a ficar incômoda, a tellak volta, verifica que eu estou suada o suficiente e busca os apetrechos pro banho.
delicadamente, me pede para tirar a toalha e fico quase nua sobre a mesa. não sinto vergonha: todas as outras mulheres estão nuas também. as tellaks usam sutiã bege sem bojo nem aro e as clientes ficam com os peitos de fora mesmo.
meu banho começa com uma esfregação vigorosa de corpo inteiro. a tellak usa a kese, que é levemente áspera, sem usar sabão nem nada. primeiro as costas, pescoço, bunda, pernas, pés, dedos dos pés e os vãos entre eles, aí de barriga pra cima os tornozelos, coxas, joelhos, barriga, seios, braços, cotovelos, mãos, dedos.
uma quantidade absurda de pele morta e sujeira vai se desprendendo de mim. tanta que a massagista se espanta, arregala os olhos pra quantidade de “biscoitinhos” saindo das minhas pernas, exclama alguma coisa que não compreendo.
se eu soubesse falar turco, me justificaria. “é que acabei de voltar da Capadócia, e antes disso estive na Jordânia, Índia, Mianmar, Camboja, Laos, Tailândia, Macau, Hong Kong, Argentina… sempre muito sol, muito calor e muita rua. deu nisso. desculpe, minha pequena e corajosa bucha vegetal não deu conta de tirar toda a pele morta”, mas só dou uma risadinha meio com vergonha. ela sorri de volta e continua me esfregando com vigor, uma mulher com uma missão a cumprir.
de vez em quando ela joga uma canecada de água fria sobre mim e sinto um alívio imenso, respiro fresco no calor abafado. então, mais esfrega-esfrega até que quase nenhum cantinho do meu corpo tenha escapado de sua inspeção (as exceções são virilha e vulva, cobertas pela calcinha).
eu já muito relaxada acho que o banho está chegando ao fim, então a tellak me vira de bruços novamente, apanha uma bacia com sabão, mergulha nela uma fronha, torce o excesso d’água, abre o tecido para que fique cheio de ar, como um balão, então o esvazia acima de mim. o ar atravessa a trama ensaboada, produzindo muita espuma, que cai em flocos sobre minhas costas. quando ela recomeça a massagem, percebo que dá sim para ficar ainda mais leve do que eu já estava. suas mãos fortes amassam meus músculos todos enquanto também me ensaboam de cima a baixo. em seguida, mais água fria pra tirar o sabão.
corpo limpo e enxaguado, ela pede para eu me sentar na mesa. esfolia meu rosto com o kese, suavemente. então, como minha mãe fazia quando eu era pequena, a tellak deita minha cabeça sobre seu colo, colinho de mãe turca, e lava meus cabelos com um shampoo de cheiro delicioso, floral e fresco, que é marca registrada da Çemberlitaş.
eu não recebia um carinho desses há muitos meses, desde muito antes de janeiro, quando saí do Brasil para viajar, ih, fazia muitos anos que eu não recebia um carinho assim tão íntimo e aconchegante. esses minutos de cafuné me fazem ter saudades de casa, de assistir filme sentada no sofá com meu pai nas noites de inverno. me transporta pra quando eu era pequena e já podia tomar banho sozinha, mas fingia não saber passar shampoo só pra minha mãe vir me fazer esse afago.
acarinhada, limpa e massageada, ela aponta para um salão lateral e diz “jacuzzi”. a próxima etapa é relaxar (mais) nas duas piscinas: uma quente e outra pelando de quente. minha pele está vermelha, vermelhíssima, livre de impurezas e tensões, os músculos tranquilos, a mente calma. entro primeiro na piscina quente normal, que já é muito quente, depois entro na de água pelando, mas só um pouco. pronto, já chega.
me movo devagar por causa da baixa de pressão depois de tanto calor e suor. vou até um chuveirão e tomo um banho frio revigorante.
me enrolo num pestemal seco e procuro a tellak que cuidou de mim. por sorte, ela não estava atendendo ninguém, sentada na saída do sıcaklık. não consigo pronunciar seu nome, parece o som de um espirro. minha capacidade mental derreteu junto com a sujeira. nos abraçamos ternamente e agradeço em turco: teşekkür ederim. de volta ao salão seco, não demoro a encontrar a minha cabine e desabo na cama estreita.
quando acordo, ainda falta uma hora pro pôr do sol. visto a muda de roupa “limpa” que trouxe de casa, mas ela parece terrivelmente suja. short e camiseta foram lavados à máquina recentemente, mas é que neste instante eu estou muito, muito limpa. nem roupa nova de loja chique estaria no mesmo nível de limpeza que eu. subo até o terraço e sou envolvida pelo ar quente e empoeirado de Istambul no verão. aos poucos, vou deixando que os sons das ruas me envolvam novamente, me preparando pra realidade da cidade.
saio da hamam montada numa nuvem de vapor. tenho tempo pra encontrar um lugar para assistir ao entardecer. à hora dourada, é sensato parar o que estiver fazendo e observar o até logo do sol embalado pelo canto dos muezzins, que convocam os fiéis pra quarta oração do dia. caminho sem rumo por diferentes belezas que me assustam a cada esquina. as arquiteturas dos tempos de Constantinopla, Bizâncio e Istambul se trançam de formas inesperadas, como uma lasanha espatifada no chão. mesquita otomana, aqueduto romano, praça medieval, um moderníssimo bonde costurando tudo.
o pôr do sol me pega enquanto chupo um picolé atravessando a ponte Gálata. quinta de seu nome, erguida em 1994 no espaço mais estreito entre a antiga Constantinopla e a efervescente Istambul das lojas de departamento, prédios espelhados e bares lotados.
assim que o céu escurece, flutuo de volta pra casa.
casa no caso é a República do Terremoto, um apartamento imenso no badalado bairro de Cihangir, compartilhado por 4 amigos que me receberam como irmã: o brasileiro Pedro, a turca Birsu, o polonês Marcin e o Mike, dos Estados Unidos. eles têm dois sofás generosos que acolhem pessoas do mundo inteiro, amigos, amigos de amigos, perdidos na noite inebriada de alegria. e eu tive a sorte de encontrá-los.
no caminho pra Cihangir, as cerejas maduras no mercado estão em promoção. os cantos entoados do alto de várias mesquitas se misturam formando uma canção só, bela e desarmônica.
isso existiu ou inventei?
#Solidariedade: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Quando a gente era criança, existia o tal dia do índio no 19/abril. Felizmente, essa data foi renomeada para Dia dos Povos Indígenas e durante o Abril Indígena eles se reúnem no Acampamento Terra Livre, em Brasília. Pessoas indígenas do Brasil todo ocupam esse espaço de poder para exigir seus direitos constitucionais à terra, à autodeterminação, à dignidade, respeito, justiça. Tá acontecendo agora e é bonito de se ver!
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