à toa pelo mundo
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nunca é o mesmo rio sempre é o mesmo rio
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nunca é o mesmo rio sempre é o mesmo rio

Amsterdã, setembro, doismili12~22 | À TOA PELO MUNDO_capítulo 20
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dez anos separam 

eu chegando de mochilão às costas, mochila à frente, pochete de couro na cintura e sacola de comidas pendurada no ombro, chapéu de feltro sueco na cabeça, chinelos nos pés pisando a Amsterdam Centraal Station 

eu chegando de mala de rodinha cheia de livros, mochila cheia de papéis às costas, pochete de couro cruzada no peito, sacola de roupas que não couberam na mala pendurada no ombro, sandálias nos pés pisando a Amsterdam Sloterdijk Station

nas duas chegadas, encontrei uma photomatic de estação e tirei cinco fotos

olho pressas Lívias que são a mesma e completamente diferentes

um rio nunca é o mesmo rio sempre é o mesmo rio nunca é o mesmo rio sempre é o mesmo rio nunca é o mesmo rio sempre é o mesmo rio nunca é o mesmo rio sempre é o mesmo rio

a foto de 2012 eu perdi com os vários papeizinhos-memórias dessa viagem - estavam todos juntos, aí desapareceram

colocamos a mesma música pra tocar enquanto caminhamos pela mesma cidade à procura do mesmo transporte até as casas onde irei tomar um banho antes de mais nada. Little Lion Man, Mumford and Sons, um country modernete, eu só sei essa deles, conheci nas pistas de dança dos bares pra turistas no Laos e foi pra playlist “chill on the road”, a da volta ao mundo. é uma música desimportante de uma banda de homens ingleses que queriam ser estadunidenses, usada no final da noite para reduzir o fogo da pista e anunciar que a festa vai acabar. a letra não me emociona, mas eu gosto do banjo, da percussão que flui e venta como um barco no Mekong, e de como a melodia cresce apoteótica de um jeito que me estimula a seguir caminhando mesmo com as malas pesadas e o cansaço da viagem

dez anos nos separam, dez anos, um bom punhado a menos de colágeno e um punhadinho a mais de melanina frita

muito sol dos três verões de 2012, carnaval em Pernambuco, Maranhão, Pará, Amazônia, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, México, Guatemala, Uruguay, Bahia que não me sai do pensamento 

dez anos de sol 

sem protetor solar 

dá melasma

se a sua dermatologista ainda não te disse, esteja sabendo

talvez daqui 10 anos minha pele seja toda isso que chamam 

mancha 

um tecido elástico de melanina que dançou e dança sob o sol

entro no tram en tram os entramos

pensamos na jornada

a viagem está quase acabando. depois dessa semana aqui, vou pra Paris, então Bergamo, Milão, cruzo o mediterrâneo pra Tunísia (mal posso esperar!) e de lá um barco e mil trens noturnos até Londres e o avião de volta pra casa. esse chinelo está quase morrendo, acho que ele não vai aguentar até o final. ainda tenho um pouco de patê escandinavo e umas últimas fatias desse pão preto e pesado que eu adoro. os cremes são de caviar e queijo azul, vêm em embalagens de alumínio flexível e tampinha redonda e dura, que nem pasta de dente. são bons porque práticos, baratos e gostosinhos, mas depois de quase dois meses já estou enjoada. aqui deve ter uns queijos bons. e stroopwafel. preciso de um banho, depois stroopwafel com chá de hortelã. será que o Jan tem chá de hortelã? stroopwafel vou comprar no primeiro mercado que encontrar. uma parte de mim quer que ele tenha o kit completo pra me receber. que ele tenha ido comprar fresquinhos da marca que ele mais gosta, tenha saído do caminho dele pensando em mim, nas nossas manhãs íntimas tomando chá de hortelã com os biscoitos holandeses que encontrei entre os importados do Pão de Açúcar. mas não devo alimentar essa ilusão. foi o pé na bunda desse cara que me trouxe até aqui. foi porque ele terminou comigo por email numa manhã de sexta-feira que um vaso de água morna arrebentou dentro de mim, foi por isso que eu falei foda-se pro marketing, vendi meus móveis, guardei meus livros e vim viver. fluir com as águas libertas. minha casa é hoje uma mochila de 50 litros que comprei em Hong Kong. por mais que o meu jeito de superar o término esteja sendo maravilhoso, pra quê lembrar o gosto dessa bota tamanho 52? afasta essa ilusão, Livinha, olha pra quem você é agora. cidadã do mundo, corajosa, independente, com tantas histórias vividas nos últimos tempos, muitas mais por viver. faz sol em Amsterdã, a cidade vai se desenhando nas janelas do tram. os prédios de janelas amplas, apertados uns nos outros, quase todos da mesma altura, de vez em quando abre um canal, flores nos canteiros e o céu azul, as bicicletas são onipresentes, na rua e paradas às montanhas em qualquer canto possível, turistas distraídos e o tram soando o sino, péim péim. distraída eu, esqueci de validar meu bilhete. será que vão me pegar? acho que não. qualquer coisa eu faço a turista burra e mostro o bilhete comprado, tá aqui na minha mão, eu só não soube o que fazer!

cheguei, Europa. pra um mês de poesia e zines. faz três dias que eu não durmo. os livros chegaram da gráfica 5 dias antes do voo, as zines Sorte de Principiante chegaram 3 dias antes, a mala aconteceu de madrugada depois de carimbar todas as 55 zines 5h55 e encadernei elas no avião entre o Rio e Lisboa ouvindo o Mano Brown entrevistar a Sueli Carneiro, o Lula e a Glória Maria. tudo pronto agora. consegui fazer caber tudo, livros, zines, roupas, carimbos, materiais de oficina, tudo nas malas de mão, só não podem pedir pra pesar essas duas rechonchudas. a centelha da viagem foi o convite do João pra participar do Festival de Poesia de Lisboa: uma mesa sobre autopublicações e uma oficina de zines, junto com a Carmen que também é zineira e poeta e artista visual e eu ainda não conheço pessoalmente. pois sim, eu vou. tratei de inventar mais movimento, mais compromisso pra minha primeira viagem como escritora. me perguntam “vai sair de férias?” não, vou a trabalho. consegui marcar lançamento do Histórias do Tempo do Amém na Travessa de Lisboa, com apresentação das incríveis Gabe e da Sofia, e no Dona Mira Café do Porto, com a Carmen lançando o dela também, oficina de zines com a Inez no sensacional Atelier Artes e Letras em Óbidos, e ainda uma noite de experimentações doidas performáticas ainda não sei como vai ser no Mato Studio do Jhon. tem tanta gente que eu quero reencontrar e gentes que eu preciso re-conhecer, transformar pixels em pele, artistas poetas que eu sei que vou encontrar e quero ler. vai ser um mês de gentes. eu adoro gente. tentei combinar umas oficinas de zines aqui em Amsterdã, em Roterdã e Barcelona, mas ninguém respondeu a tempo, o pessoal tirou férias em agosto... bem que a taróloga disse pra eu me organizar e fazer tudo antes, mas eu simplesmente não consegui. desculpa Deb, você bem que me avisou. mas tudo bem. em Portugal o babado vai ser forte e antes de chegar lá vou atrás dos eventos de poesia e experimentação que estiverem rolando, há de haver coisas boas rolando. esse lado de Amsterdã é mais vazio que o centrão da Centraal Station. silencioso. eu tinha esquecido como esse norte da Europa é silencioso. o tram nem toca o sino, só desliza entre prédios altos em avenidas tranquilas, uma igreja de pedra, condomínios de apartamentos grandes com bandeira LGBTQIA+ na janela, uma beira de rio com uma igreja miúda velha no meio do mato, todo mundo respeita os sinais de trânsito e eu de novo esqueci de validar o bilhete, está aqui na minha mão, eu só me atrapalhei com as malas e quando finalmente me organizei estava sentada longe do terminal que faz piiip. vou ficar quietinha aqui, qualquer coisa eu faço a turista burra.

lá vamos nós

beijinhos,

Lívia

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em 2012, fiz uma viagem de volta ao mundo tão incrível que pareceu mentira (mas foi tudo verdade). acompanhe a escrita-leitura dessas aventuras: uma viagem literária pelo espaço e pelo tempo. hashtags #literatura #viagens #mundo #memória #aventura #relatodeviagem #mochileira #lowbudget